sábado, 16 de junho de 2012

A LINGUAGEM NOSSA DE CADA DIA

  
  Diz a lenda que Rui Barbosa (1849-1923), famoso advogado, orador de largos recursos, ministro, depois senador da República, certa feita, ao chegar a sua casa, ouviu um estranho barulho vindo de seu quintal.
  Ao verificar de que se tratava, percebeu um ladrão que estava tentando furtar alguns patos de sua propriedade. Aproximou-se ele bem devagar do indivíduo e, surpreendendo-o em flagrante delito, quando o meliante já tentava pular o muro, com as aves debaixo do braço, disse ao criminoso, no seu estilo vocabular próprio:

"Oh, bucéfalo anácroto! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos emplumados bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito de minha residência, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa.
Se fizeres isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto de tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina a partícula insignificante do átomo!"

  E o ladrão, sem saber o que diabos o homem estava lhe dizendo, simplesmente respondeu:

- Seu doutor, eu deixo ou levo os patos?

  Da leitura desse folclórico diálogo, observa-se que a linguagem severamente rebuscada de Rui Barbosa, o famoso "Águia de Haia", foi inadequada para aquela ocasião, que se tratava apenas de um furto de patos, pois o ladrão ficou perplexo, atônito, sem compreender o que o ilustre cidadão queria, na verdade, afirmar com tal discurso.
  Pois bem. Nos dias atuais, não raro nos deparamos com casos parecidos com o acima mencionado, principalmente no que diz respeito à linguagem utilizada por alguns poucos operadores do Direito, como juízes, promotores e advogados, em suas peças processuais, que ainda teimam em imaginar que estamos em pleno século XIX, quando falar difícil dava "ibope", transmitia ares de superioridade acadêmica, enfim, era considerado culto quem assim o fizesse.
  Mas não, presentemente, mostrar-se erudito com discursos rebuscados e recheados do estilo "rococó" é sinônimo de puro estelionato vocabular, de falta de sensibilidade e habilidade para o trato com as demais pessoas, sobretudo o homem comum do povo, o sertanejo, o lavrador, por exemplo.
  De igual modo, médicos e profissionais da saúde que procuram parecer profundos conhecedores do seu ofício, ao prescreverem as suas receitas aos pacientes com os famosos "garranchos", estão no mesmo pé de igualdade da citada lenda de Rui Barbosa, uma vez que, assim procedendo, acabam afrontando o direito de o paciente informar-se, com precisão, sobre qual o medicamento deverá adquirir junto às drogarias e farmácias.
  Que descompliquemos, pois, nossas vidas. Que falemos somente aquilo que todos possam compreender.
A propósito, o escritor Graciliano Ramos já dizia que:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Bom final de semana a todos(as)!

Um comentário:

  1. Gostei muito da publicação Dr João Neto, é a mais pura realidade! abraço

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