terça-feira, 6 de março de 2012

AS MESAS DE SÃO LÁZARO

 Nestes tempos de vida agitada, comunicação rápida, internet de banda larga, Facebook, Twitter, celulares com GPS, onde vários instrumentos tecnológicos debruçam-se a cada dia sobre nossas cabeças, é natural que soframos algum processo de desgaste ou de esquecimento de nossas velhas tradições populares, em um futuro não muito distante de nós.
Para que não caíamos no absurdo desconhecimento de nossas raízes culturais, trago aos eleitores deste Blog a estória seguinte, a qual, quando ainda menino, tive o privilégio de testemunhar no Povoado Quilombo, município de Matões, onde residia com minha família, no final dos anos 70.
Segundo o padre Astolfo Serra, o qual, inclusive foi Padre em Matões, tendo deixado a batina para virar Interventor Federal no Maranhão em 1930, nomeado pelo presidente Vargas, no seu livro “Terra Enfeitada e Rica”, uma das festas religiosas típicas do interior do Maranhão são as chamadas “Mesas de São Lázaro”.
O povo faz promessas a São Lázaro, que ele criou na sua fé ingênua e simples. Mas não se trata do mesmo Lázaro, morador da cidade de Bethânia, irmão de Marta e Maria, e que foi ressuscitado por Nosso Senhor Jesus Cristo, saindo da sua tumba de morto.
É outro personagem. O pobre, mais para mendigo, doente, cheio de chagas pelo corpo. Alimentava-se das migalhas que eram jogadas da casa de um homem rico. Ficava sempre à porta deste, esperando alguma sobra de comida para saciar a fome.
Para amenizar o seu sofrimento, os cães vinham lamber-lhe as inúmeras feridas.
Porém, como o destino prega as suas peças, Lázaro morreu e foi levado pelos anjos para o céu. Descanso eterno e merecido. Ficou ao lado de Abrahão.
O homem rico, que não era de ferro e nem muito menos santo, após gozar sua faustosa vida de glutão (bom de garfo) também veio a óbito.
Para o seu profundo azar, não pôde subir ao céu. Teve que ir para as hostes inferiores. A passagem já estava tirada e paga para o inferno, havia anos, só ele é que não sabia. Estúpido, pensava que ia viver eternamente (Lucas, 16:19-31).
Ora, sendo Lázaro o “santo” dessa parábola evangélica, passou a viver na alma e no imaginário popular, fazendo milagres e recebendo promessas de toda parte.
Virou ele, então, o santo protetor dos males da lepra e dos mendigos. Fazem-se, então, votos ao santo para curar feridas brabas, úlceras, dermatoses e mais agonias da pele humana, ou para livrar-se gente delas.
Depois de a graça ser alcançada, é hora de fazer o pagamento da promessa. A pessoa sarada da doença oferece um grande jantar aos cachorros em homenagem a São Lázaro, o “dermatologista” do além. Bom lembrar que a promessa não é feita aos cães, e sim ao santo.
A fé arde sincera nessas almas ingênuas e as promessas são cumpridas à risca, com toda a solenidade possível. É um acontecimento festivo na localidade.
Convidam-se todos os cães da redondeza para o banquete, onde somente eles são as principais celebridades. Nesse dia cachorro passa bem, tira a barriga da miséria. Ninguém ousa lhes dar pancada. Chamar-lhes de pulguentos, ofensa grave. Te esconjuro! Antes, são banhados e escovados.
São ainda enfeitados com laços de fita no pescoço. É dia de festa e um convidado tem que estar à altura. Para eles, uma verdadeira festa no céu.
À hora da ceia, os donos trazem os animais para o banquete. No chão varrido, põe-se uma toalha de mesa bem engomada, pratos limpos também são postos ali.
E a melhor comida é servida aos animais. Os alegres convivas são servidos por seus próprios donos.
O beneficiado pelo milagre, o que recebeu a graça esperada, vem também comer com os cachorros e a ceia, assim, se inicia por entre a gula brutal da cachorrada e por entre a música que acompanha a festa, alegremente.
O fim de toda essa festa é sempre uma briga medonha de cachorros, que devoram tudo e espatifam os pratos pra tudo que é lado, um querendo abocanhar o pedaço de carne que está no prato do outro, mas nem por isso deixam o dono da festa e seus amigos de se sentirem satisfeitos.
Depois que os cães devoram a ceia, é que as pessoas convidadas tomam parte na refeição, comendo, ao menos intencionalmente, com a matilha.
E, noite adentro, acontece animada festa, ao som de afinada viola ou sanfona, ou de roufenha rabeca, que dura até as primeiras horas da manhã do dia seguinte.
Por fim, convém frisar que Câmara Cascudo menciona que a tradição de promessa religiosa paga a um animal é produto do nosso folclore brasileiro, não sendo encontrado em Portugal ou na Espanha.
Referido autor, no livro Superstição no Brasil, citando Daniel Gouveia, informa que não se deve cuspir nos cães, por que depois de nossa morte, na longa travessia que se fará até chegar à casa de São Miguel, onde serão julgadas as nossas almas, sentimos uma grande sede e, neste longo percurso, só encontraremos a casa de São Lázaro; aí, se não cuspimos nos cães, quando ainda éramos vivos, somos logo servidos com água boa e fria e, ao contrário, somos surpreendidos por dentadas implacáveis.
Talvez aí resida uma das origens da crença popular. Mas a verdade é que a fé move montanhas. A propósito, a fé, a esperança e a caridade são como que capítulos a englobarem toda a nossa existência e salvação, como já dizia São Tomás de Aquino.

3 comentários:

  1. Esta postagem sobre As Mesas de São Lázaro é simplesmente magnífica. Além de estimular a nossa curiosidade, nos remete a um tempo de respeito e inocência, recíproca entre os homens. Ainda, faz-nos voltar as lembranças de menino, dos terços de São Benedito, São Francisco e outros homenageados, onde ao término da reza era servida mesa farta de café com bolo. Comíamos e depois voltávamos alegres para casa dormir e no outro dia acordar bem cedo para irmos à roça.
    Parabéns pelo Blog. Ele é um resgate da nossa cultura.

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  2. Obrigado pelo comentário, primo Sidney, valeu! Tempos bons aqueles...

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